Nota sobre a Portaria nº 2.282, de 27 de agosto de 2020

Nota sobre a Portaria nº 2.282, de 27 de agosto de 2020

 

 No dia 28 de agosto de 2020, foi publicada na 166ª edição do Diário Oficial da União a Portaria nº 2.282/2020 do Ministério da Saúde, que Dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS.

 Nos termos da referida portaria, torna-se obrigatória a notificação à autoridade policial pelo médico, demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolheram a paciente dos casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro. Nessa hipótese, os referidos profissionais deverão ainda preservar possíveis evidências materiais do crime de estupro a serem entregues imediatamente à autoridade policial, tais como fragmentos de embrião ou feto com vistas à realização de confrontos genéticos que poderão levar à identificação do respectivo autor do crime, independente de consentimento da mulher.

 O Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez, necessário ao procedimento de aborto legal será composto por quatro etapas, que prolongarão no tempo a situação de vulnerabilidade da mulher, por demandarem:

  1. a lavratura de Termo de Relato Circunstanciado pelos profissionais de saúde (que incluirá local, dia e hora aproximada do fato, tipo e forma de violência, descrição dos agentes da conduta e identificação de testemunhas);
  2. o fornecimento de relatório detalhado por médico responsável após detalhada anamnese, exame físico geral, exame ginecológico, avaliação do laudo ultrassonográfico e dos demais exames complementares;
  3. A assinatura de Termo de Responsabilidade que conterá advertência expressa sobre a previsão dos crimes de falsidade ideológica (art. 299 do Código Penal) e de aborto (art. 124 do Código Penal), caso não tenha sido vítima do crime de estupro;
  4. A assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido que deverá conter os desconfortos e riscos possíveis à sua saúde, os procedimentos que serão adotados quando da realização da intervenção médica, a forma de acompanhamento e assistência, assim como os profissionais responsáveis e a garantia do sigilo que assegure sua privacidade quanto aos dados confidenciais envolvidos, passíveis de compartilhamento em caso de requisição judicial.

 Ainda, na segunda etapa do Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez, a equipe médica deverá informar a gestante acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia e ela deverá proferir expressamente sua concordância, de forma documentada.

 A respeito dessas alterações no procedimento de aborto legal, primeiramente importa observar que o aborto é legal no Brasil não apenas na hipótese da gravidez ser fruto de estupro (art. 128, inciso II, do Código Penal), mas também quando há risco de vida para a mulher em decorrência da gestação (art. 128, inciso I, do Código Penal) e nos casos de feto anencéfalo (conforme decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 54).

 Considerando, então, uma das hipóteses em que é possível a interrupção legal da gestação, isto é, nos casos de estupro, é surpreendente que o Ministério da Saúde determine que a equipe médica responsável pelo caso reporte o caso imediatamente para a autoridade policial, independente do consentimento da vítima. Isso, especialmente quando se considera a necessária relação de confiança e sigilo que deve haver entre médico e paciente.

 Mais ainda, o procedimento determinado pela Portaria nº 2.282/2020 coloca a obtenção de provas acerca do crime de estupro como prioridade em relação ao atendimento humanizado à mulher, que já se encontra em situação de vulnerabilidade. Note-se que esse paradigma que prioriza a obtenção de provas e não a atenção à mulher em situação de violência já havia sido superado a partir do advento da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), que trata especificamente dos casos de violência doméstica (que podem ser de cunho sexual ou não).

 Ademais, o procedimento em questão também desconsidera a anuência da mulher em fornecer material genético e biológico, como fragmentos de embrião ou feto para eventual procedimento investigativo. Assim, o acesso ao Sistema Único de Saúde fica condicionado a uma espécie de anuência tácita, em que a mulher apenas é informada de que essa coleta será feita.

 A esse respeito importa lembrar que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 973.837 RG (2016), alertou sobre que os limites dos poderes do Estado de colher material biológico de suspeitos ou condenados por crimes, de traçar o respectivo perfil genético, de armazenar os perfis em bancos de dados e de fazer uso dessas informações. Na ocasião foi considerado necessário analisar a questão à luz da violação dos direitos da personalidade e do princípio da vedação à autoincriminação – art. 1o, III, art. 5o, X, LIV e LXIII, da Constituição Federal. Bem, se o material genético de suspeitos ou condenados por crimes deve ser protegido a partir dos direitos da personalidade, o mesmo deve ser estendido ao material genético e biológico de mulheres vítimas de estupro, que buscam o amparo do Estado para realizar o procedimento de aborto.

 A Portaria em questão também se mostra em descompasso com as obrigações internacionais às quais o Brasil se vinculou. Nesse sentido, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em seu relatório Violencia y discriminación contra mujeres, niñas y adolescentes (2019) destacou que os direitos sexuais e reprodutivos incluem o direito à igualdade e à não discriminação, à vida, à integridade pessoal, à saúde, à dignidade e ao acesso à informação, entre outros. A partir desses direitos, a obrigação fundamental dos Estados inclui a garantia de acesso rápido e adequado aos serviços de saúde que somente mulheres, adolescentes e meninas necessitam, com base em seu gênero e função reprodutiva, livres de todas as formas de discriminação e violência, de acordo com os compromissos internacionais existentes em relação à desigualdade de gênero. A Comissão ressaltou ainda que tanto o sistema universal como o interamericano de direitos humanos têm abordado progressiva e consistentemente os impactos da negação de tais serviços nos direitos das mulheres.

 A este respeito, importa observar que a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher prevê que os Estados Partes "devem tomar todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher no campo da saúde, a fim de garantir, com base na igualdade entre homens e mulheres, o acesso aos serviços de saúde, incluindo aqueles relacionados ao planejamento familiar", e também "devem tomar todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra as mulheres em todos os assuntos relacionados ao casamento e às relações familiares e, em particular, devem assegurar, com base na igualdade entre homens e mulheres, os mesmos direitos de decidir livre e responsavelmente sobre o número e o espaçamento de seus filhos e de ter acesso à informação, à educação e aos meios que lhes permitam exercer esses direitos".

 Por fim, merece especial destaque o Comentário Geral Nº 36 (2018) do Comitê de Direitos Humanos a respeito do Artigo 6º da Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. De acordo com o Comitê, "os Estados Partes devem proporcionar acesso seguro ao aborto para proteger a vida e a saúde das mulheres grávidas, e em situações onde levar a gravidez a termo causaria dor ou sofrimento severo à mulher, em particular nos casos em que a gravidez é resultado de estupro ou incesto ou o feto tem uma anormalidade grave”. Ademais, o Comitê de Direitos Humanos reconheceu ainda que impor "um dever aos médicos e outros oficiais de saúde de relatar casos de mulheres que tenham sofrido aborto" não respeita o princípio da não-discriminação.

 Portanto, além de não consistir em mecanismo que garanta o atendimento à saúde integral da mulher, não dando, assim, cumprimento aos artigos 6º, 196 e seguintes da Constituição Federal, a Portaria nº 2.282/2020 do Ministério da Saúde implica em violação de normas internacionais em matéria de direitos humanos, às quais o Brasil se vinculou.

 Por todos os motivos apresentados acima, as organizações que assinam conjuntamente esta nota mostram seu repúdio à Portaria nº 2.282/2020 do Ministério da Saúde.

 

Associação Visibilidade Feminina

LABÁ - Direito, Espaço & Política

Dia Laranja Brasil

Privado

União Brasileira de Mulheres Minas Gerais

Rede de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher do Alto Jequitinhonha

Comissão Estadual da Mulher Advogada - OAB/MG

Elas Pedem Vista

Sentidos do Nascer

Elas Discutem

AMP-Associação Mulheres Progressistas

She Decides

International Youth Alliance for Family Planning

Instituto de Juristas Brasileiras


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